João chegou ao céu com a ajuda de feijões mágicos; João e Maria mudaram as suas vidas quando encontraram uma floresta e nela uma casa antiga feita de doces e repleta de simbologia; Villa-Lobos encantou o mundo com seu Trenzinho caipira e Jesus Cristo salvou uma festa de casamento, transformando água comum em um vinho de excelente qualidade. Agora, imagine todas essas histórias ficcionais ou não, se cruzando, se encontrando num único lugar de sonhos, chamado Cave Colina de Pedra. Pode acreditar que esse lugar existe e fica em Piraquara, no Paraná, distante apenas 35 km da capital. Piraquara em tupi possui vários significados, mas um deles pode ser caipira. Seria o espírito do nosso maestro Villa-Lobos passeando com seu trenzinho pelo lugar?
Pode parecer um delírio e no começo, eu que estava com olhos um pouco embaçados pelo horário ainda cedo, de uma manhã de inverno, que havia nascido há pouco, dei de cara com os primeiros sinais de que estava entrando mesmo em lugar mágico. No inverno, sempre intenso no Paraná, as florestas ficam ainda mais misteriosas, num jogo barroco de claro-escuro, que só melhoraria o que estava por vir. Eu voltava de Curitiba para Guarulhos, onde moro, e no caminho passei para conhecer esta vinícola, que já estava no meu radar há tempos. E lá encontrei uma floresta encantada, uma casa antiga, que depois soube ser um museu, a Casa Ipiranga, um trem do tipo Maria Fumaça (Ai seu foguista bota fogo na fornalha que eu preciso muita força, muita força, como disse o poeta Manuel Bandeira), uma chuvinha leve e fria que insistia em não parar e um proprietário encantador, Ari Portugal, um mago cheio de histórias para contar, como quem tira coelhos de sua cartola. Pronto, agora o Sérgio Bruxo estava dentro de um processo de alquimia.
Minha rotina, entre os trabalhos a que me dedico, tem sido fazer visitas a vinícolas, sempre me esforçado para que sejam técnicas (meu lado sommelier falando alto), claro que tirando de cada uma, aromas e sabores ímpares, porque não existem duas iguais. Mesmo assim, quando cheguei ao portão principal, esperando pelo senhor Ari, para quem já havia telefonado e que me buscaria no portão, eu me vi diante de toda a beleza do lugar, aquele turista que se esconde na alma de todos nós, saltou para fora e num passe mágica, eu estava fotografando tudo e viajando na visita. Dava para ver logo da entrada, uma antiga estação de trem, que só depois vim a saber que pertencia à propriedade. Note como tudo vai se montando como um quebra-cabeças, que após várias horas de visita, que me pareceram minutos, e de conversas inacabadas, porque o assunto é tanto, que não se esgota com o caminhar rápido dos ponteiros do relógio, eu ouvi e anotei tudo o que pude de como a cave surgiu. Agora era um sonho dentro de uma história real e, ao mesmo tempo misteriosa. O bruxo estava verdadeiramente em casa.
Ari Pinto Portugal, um preservacionista por excelência, participou de um leilão da extinta estrada de ferro Paranaguá-Curitiba, no ano de 2.000, justo na virada do século e do milênio, adquirindo nessa oportunidade, meio milhão de metros quadros para construir um hotel fazenda e junto com a compra veio um túnel ferroviário e uma estação de trem denominada Roça Nova, no km 80,4 da ferrovia, a mesma onde foi assassinado covardemente, a mando de Floriano Peixoto, Ildefonso Pereira Correia, o grande Barão do Cerro Azul, o maior produtor e exportador de erva-mate do mundo no século XIX, junto seus companheiros, no km 65 em 1894. História que o Paraná e o Brasil parecem não fazer muita questão de manter viva.
Mas se comprou as terras para construir um hotel fazenda, como surgiu a vinícola que vim conhecer? E aí que o sobrenatural faz contato com ele e surge uma cave realmente de outro mundo. Um dia sentado na boca do túnel ferroviário, Ari se perguntou o porquê de tê-lo comprado e à estação de trem, o que faria com aquilo agora? De repente, do nada, ele vê um homem alto, magro por volta de uns 50 anos, que lhe diz: “Este túnel vale ouro”. Ari, um pouco espantado pelo inusitado da aparição, calmamente lhe responde: “Pois eu te vendo pelo preço de prata, pois não sei o que fazer com ele”. Então, o misterioso homem lhe conta sobre uma experiência dele, vivida nas Caves da Borgonha, onde eles envelheciam champanhe num túnel também e lhe dá um conselho: “Faça isso aqui e você será muito bem recompensado”. Um conselho de outro mundo, que deu muito certo mesmo. Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, diria Shakespeare, em Hamlet.
No entanto, a história do lugar e das pessoas não para por aí. Essa cave tem sua vida relacionada com grandes personalidades brasileiras, a começar pelo patriarca dos Portugal, Diogo Pinto de Azevedo Portugal, coronel-comandante da real expedição no Brasil, que partiu para Curitiba em 1809, de quem o seu Ari é tetraneto. A ferrovia, por sua vez, foi projetada pelos irmãos Rebouças, os primeiros engenheiros negros do Brasil e os maiores do século XIX por aqui. A história do Paraná está intimamente ligada à vida dos irmãos, Antônio e André, que projetaram, entre outras grandiosidades, a estrada da Graciosa, o famoso chafariz da praça Zacarias e o Parque Nacional do Iguaçu.
Tudo isso coloca Ari Portugal na história das ferrovias brasileiras, porque a Curitiba-Paranaguá é a maior obra da engenharia brasileira do século XIX. E, como um preservacionista convicto que é, recuperou tudo que pode e deu ao famoso túnel o destino de cave que tem hoje, sem deixar de cuidar da natureza e da história que rodeavam o lugar. Fato que lhe rendeu uma láurea dada pela UNESCO, em 2013, como uma vinícola singular no mundo dos espumantes, devido à temperatura, umidade e fluxo de oxigênio dentro do túnel onde se localiza a cave para o envelhecimento dos espumantes, pela preservação da mata atlântica, da ferrovia e por ser um projeto único e inédito no mundo. Um prêmio mais que merecido pela sua dedicação ao patrimônio histórico nacional e que foi recebido em alto estilo no Château Clos de Vougeot, na França.
Portugal afirma nunca mais ter visto aquele senhor e acreditar tratar-se apenas de um déjà vu, mas que sendo ou não, o ponto de partida do seu negócio, estará sempre ligado àquela conversa. Basta notar que foi esse fato que o levou a construir a Cave Colina de Pedra, dentro do referido túnel, mantendo-o totalmente preservado, com seus trilhos e paredes de época, tudo intocado. Se a Princesa Isabel fizesse uma nova visita ao túnel, ela o veria ainda com as marcas da fuligem das chaminés das Marias Fumaças, esse túnel é uma riquíssima obra de arte feita pelos ferroviários da época e a Colina de Pedra, pelas mãos de seu dono, vem ajudando a mantê-la assim.
A Colina de Pedra começou as suas operações no ano de 2012, capitaneado por Ari Portugal, em parceira com a Família Geisse, usando o túnel ferroviário de 429 metros de comprimento a 955 metros de altitude, para o envelhecimento dos espumantes com uma capacidade para um milhão de garrafas por ano. Espumantes feitos pelo método tradicional de uvas chardonnay e Pinot Noir, provenientes de vinhedos conduzidos sob manejo sustentável, o que proporciona uvas de excelente qualidade. A Cave Colinas de Pedra faz sua guarda e maturação no interior do túnel em rocha de granito, estando ele no ponto mais alto da ferrovia que liga Paranaguá a Curitiba. A temperatura lá dentro tem variação de somente 1 grau durante o ano, sendo a mínima de 16 e a máxima de 17, fator que transformou esta cave, em um lugar único para maturação de vinhos espumantes.
O enoturismo costuma ser muito parecido em quase todas as vinícolas do mundo, com passeios, petiscos, explicações e degustações. Alguns são mais organizados, outros menos, mas de um modo geral é sempre um passeio que vale a pena e que vem crescendo muito no Brasil e gerando emprego e renda em várias regiões. No entanto, na Colina de Pedra, eu vi algo diferente de tudo que já conheci antes. Em sua área de visitação existe um vagão automotriz da década de 60 (Litorina), que serve também como restaurante, dando a sensação de que se está em uma viagem pela serra do mar. Não podemos nos esquecer de que existe uma estação de trem antiga dentro da propriedade, o que reforça o clima de volta ao passado. Vale lembrar ainda de que tudo é complementado pela exuberante mata atlântica, em excelente estado de conservação, o que nos afasta da sensação de ambiente urbano.
E por falar em viajar ao passado, estamos de novo no tema de outro mundo, só que agora a imaginação fica por conta do visitante, cada um é convidado a construir a sua própria viagem de sabores, sensações e memórias afetivas. Quando da visitação ao túnel, onde está a área de maturação de espumantes, cada visitante tem a nítida possibilidade de se sentir voltando dois séculos no tempo, quase como se os Rebouças, D. Pedro II ou a Princesa Isabel estivessem para chegar a qualquer momento. Cada visita propicia o nosso próprio dia de realeza, assim como acontece quando visitamos castelos na Europa ou lemos livros sobre a história do Brasil.
O próprio Ari Portugal é o mago das aulas de degustação e de produção de espumantes, conduzindo os visitantes para dentro do túnel, como a travessia de um grande portal do tempo. Ele quer, então, que um passeio de enoturismo, se converta numa viagem histórica, não só de um período pouco conhecido dos brasileiros em geral, inclusive paranaenses, mas também com explicações sobre como o túnel foi aberto e o porquê dos arcos romanos de sustentação que ele tem. Realmente, é algo imperdível e inesquecível.
Bom, não poderia terminar essa matéria de exaltação histórica sem falar das propriedades da bebida encantadora que experimentei por lá, afinal essa é a matéria sobre uma empresa que produz vinhos espumantes. Eles se apresentam como Tunnel nature, Tunnel brut e extra brut são compostos de chardonnay 80% e 20% pinot noir e o Tunnel brut rosé é feito 100 % de pinot noir. Claro que variam de gosto entre os apreciadores, eu, por exemplo, me encantei o nature. Lembrando que cada bebida, mais do que um gosto, contém uma experiência.
Cave Colinas de Pedra
R. Antônio Brudeck, 100 – Roça Nova, Piraquara – PR (41) 99667-5000